Sobre costumes e padrões
Uma cena cotidiana
Comentavam, as mulheres, funcionárias de uma determinada empresa sobre como ficaram chocadas ao verem duas jovens “de boa aparência” contratadas para trabalharem como auxiliar de limpeza na firma terceirizada prestadora de serviços:
– Fiquei com pena.
Enquanto a outra:
– Por que não estudam? São tão bonitas, será que não conseguem colocação melhor?
O espanto dos sentidos acostumados com repetições
O sistema de castas é uma configuração que existiu em diferentes tempos e sociedades. A Índia apresenta a expressão mais completa deste sistema; apesar de ter sido abolido há mais de sete décadas, ainda sobrevive por força da tradição ou mesmo conveniência dos privilegiados que, em decorrência da condição hegemônica, ainda exercem fortes influências no todo social. É certo que o sistema capitalista, no qual a Índia se insere, só mantém as estruturas tradicionais que se ajustam ou contribuem para a manutenção do próprio sistema capitalista. A desintegração total do sistema de castas na Índia envolve a mobilidade social, que requer séculos para surtir efeitos no tempo.
O Brasil se formou como país a partir da invasão lusitana. Portugal dominava as navegações na Idade Média e buscava um caminho novo para as Índias com a finalidade de satisfazer interesses mercantilistas. Deste objetivo primeiro, uma das consequências – com a chegada ao Brasil – foi a fusão, ou mesmo combinação, de costumes e tradições. A colonização Portuguesa no Brasil, o tráfico de africanos na condição de escravos, as diversas categorias de violências que aqui se instauraram a partir da invasão estão impressas em nós. Porém, não obstante as outras formas de violências, destaco a violência contra as mulheres: os homens que vinham para o Brasil queriam explorar as terras. Satisfaziam seus anseios sexuais primeiramente com as mulheres nativas e posteriormente com as mulheres escravizadas trazidas do Continente Africano. Em ambas as situações, existia uma condição hierárquica de dominadores versus dominadas. O trabalho escravo para atingir interesses europeus foi imposto aos índios e negros, com a diferença de que os primeiros eram conhecedores das terras e tiveram mais condições de fuga e os segundos eram afastados de suas terras, cultura e tradições, tornando-se mais fragilizados e com poucas condições de enfrentamento contra as violências que sofriam.
O trabalho no Brasil passou a ser essencialmente atividade de homens e mulheres negros. Homens e mulheres brancas exerciam atividades de comando, na configuração agrária desenvolvida no Brasil Colônia: grandes latifúndios que produziam sobretudo plantações de cana para exportação de açúcar.
No Brasil Colônia, a moça branca empobrecida via-se em situação de miséria e vulnerabilidade, restando-lhe poucas alternativas de sobrevivência. Entre elas, um casamento ou a prostituição.
O Brasil atual carrega o cerne da existência escravocrata e violenta. Na cena retratada, trabalhos pesados como limpar chão e lavar louças, exercidos pelas moças brancas de origem europeia na condição de empregadas, causaram estranhamento devido aos resquícios históricos da escravidão e também à própria herança cultural em que os trabalhos menos valorizados, quase sempre, são exercidos por herdeiros das condições sociais desfavorecidas.
A história pessoal que levou aquelas moças brancas para o serviço de auxiliares de limpeza pode refletir a falta de opção ou mesmo a resistência em aceitar submeter-se ao sistema que em geral as impele para um trabalho no comércio de shoppings ou como atendentes/recepcionistas – que geralmente pagam salários mínimos e não exigem outras qualificações que não a boa aparência.
O modelo da princesinha vítima de intempéries que terá a situação de penúria resolvida com a chegada de um príncipe pronto para casar-se satisfaria as espectadoras da situação, mesmo que o príncipe jamais aparecesse e que a situação jamais se modificasse.
Contos de Fadas à parte, a realidade é que mulheres empobrecidas que trabalham em subempregos ou em colocações menos valorizadas socialmente tornam-se mais vulneráveis aos assédios e abusos. É notório que a pobreza material coloca estas mulheres em condições de maior vulnerabilidade e menor proteção do sistema legal. Mesmo na esfera das pessoas cultas e bem-intencionadas em questões humanitárias, vestígios de valores surgem em conversas e atitudes descuidadas. Conteúdos subliminares dão referências importantes sobre quem somos enquanto sociedade e como indivíduos. A sociedade brasileira não se espanta com a mulher negra, de cabelos já grisalhos pela idade avançada, que esfrega o chão onde pisam os cidadãos brancos; não se espanta com a presença da mulher negra limpando os corredores da universidade. A gênese do espanto com as moças brancas no serviço de limpeza é da mesma categoria do espanto com a moça negra cursando a faculdade de medicina por exemplo. É o espanto dos sentidos acostumados com determinadas repetições, que se formam a partir dos princípios do reconhecimento de padrões a que se está acostumado e que é identificado como familiar. Aprende-se obedecer aos comandos e, como na música, qualquer acorde que fuja do esquema harmônico é percebido como estranho.
Sobre a regressão dos sentidos, Horkheimer & Adorno (1985) escrevem em Dialética do Esclarecimento a respeito da subordinação do espírito. É disto que falamos aqui: da inexistência de percepção autêntica, da alienação, de esquecimento de si, como advertiu Benjamin sobre a coisa escutada que se grava no sujeito distante de si próprio. Numa sociedade justa, o trabalho socialmente útil e necessário seria valorizado e os trabalhadores seriam merecedores de respeito, equidade material e reconhecimento, independentemente da cor, raça ou etnia. Uma sociedade justa em que o óbvio não pareça utópico.
Referências
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Jorge Zahar RJ, 1985.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. in: Magia Técnica Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. ED. Brasiliense. SP. 1984. 7ªed.
É verdade, os sentidos regridem na sociedade contemporânea. Mas, visualizo essa regressão, mesmo reconhecendo a força da tradição no pensamento social, também como perda de referenciais nas próprias tradições, ora substituídas pela constante e rápida modificação dos meios que aceleram a informação e inibem o conhecimento, na medida que o instrumentaliza.
Assim, os preconceitos são reforçado por um pseudo reconhecimento da igualdade, confundida i com o todo igual quase mitológico diante da: “[…] incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos : a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985. p. 47), enfim, sem a marca da emancipação do indivíduo.
Obrigada Vânia. Sigamos refletindo e elaborando a História
Estou compartilhando com as várias turmas de alunos neste 8 de Março, Dia Internacional da Mulher.
Bem pertinente a reflexão!
Obrigada pelos retornos. É sempre bom este diálogo.