Quem está cuidando de quem cuida?

De acordo com dados do Ministério da Saúde e da Organização   Pan-Americana da Saúde, foram confirmados 107.423.526 casos de covid-19 no mundo. O Brasil ocupa o terceiro lugar em número de casos 10.455.630  Em relação ao número de óbitos foram confirmados 2.360.280  no mundo no mesmo período e, ocupamos o pesaroso segundo lugar com 252.835  óbitos.

Nesse contexto, me surgiu a indagação de como está a situação dos profissionais de saúde, que também estão vulneráveis a essa doença, especificamente a enfermagem, uma vez que esses profissionais desenvolvem suas atividades de forma constante, 24 horas por dia de forma ininterrupta junto aos usuários dos serviços de saúde, estando na chamada linha de frente no tratamento.

Fiquei preocupada com a situação de saúde, desses profissionais de saúde, levo isso em consideração, uma vez que a própria natureza do trabalho em saúde traz riscos à saúde do trabalhador pela exposição a que estão sujeitos a: agentes biológicos (vírus, fungos e bactérias), físicos (radiações ionizantes), químicos, mecânicos (acidentes por quedas), ergonômicos e psicossociais.  A legislação trabalhista e os sindicatos, como forma de tentar amenizar essa situação (como se isso fosse possível), instituem a concessão de adicionais de insalubridade e periculosidade, que não diminuem os riscos, mas acrescem valor mínimo aos salários dos profissionais que estão expostos a essas condições insalubres.

Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem, a categoria já contabiliza 500 óbitos entre enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e, temos o alarmante dado que 30 desses óbitos ocorreram somente em janeiro desse ano. O   Estado de São Paulo ocupa o primeiro lugar entre os casos e mortes pela patologia entre os profissionais de enfermagem.

Perante o cenário mundial, as estatísticas das mortes desses profissionais, são preocupantes, na medida em que o país apresenta colocações com posições similares na comparação com outras nações relativa ao número de doentes e mortes. O país responde por um terço do total do número de mortes de profissionais de enfermagem pela doença no mundo e, de acordo com o Conselho Internacional de Enfermagem, estamos vivenciando um cenário similar ao encontrado na guerra, ao enfrentar essa pandemia diariamente, uma vez que no mundo já ocorreram a morte de 1500 profissionais em 44 países, superando o número de mortes registradas desses profissionais na I Guerra Mundial. Por essa razão acaba não soando estranho a utilização da expressão –  linha de frente, que por sua vez traz consigo implícito o conceito de mais exposição ao vírus e, consequentemente o contágio pelo vírus por esses profissionais.

A delicada e preocupante situação exposta acima, me levou a tecer alguns questionamentos:

– quais são os motivos ocupacionais que estão envolvidos na morte desses profissionais?

–  se os profissionais da saúde não estão seguros ao exercer as suas práticas na assistência a saúde, será que a população pode ter algum nível de tranquilidade e segurança ao adentrar nas instituições de saúde?

Para tentar elucidar os questionamentos elencados acima, se faz relevante considerar alguns pontos:

  1. a pandemia de certa forma, surpreendeu as instituições de saúde, que não possuíam um estoque adequado de EPIs (Equipamentos de Proteção individual), suficiente frente a alta demanda de casos novos e inesperados da doença;
  2. a falta de EPIs, levou algumas instituições ao estabelecimento de protocolos, que não levaram em conta tudo o que é preconizado pelas normas de biossegurança, como por exemplo, o uso de máscaras tipo N95, por um período maior que o indicado pelo fabricante, ou até mesmo a ausência do uso de alguns EPIs considerados essenciais;
  3. muitas informações controversas e até mesmo a desinformação em saúde (as chamadas Fake News),circularam a ainda circulam livremente, fazendo com que as pessoas desacreditem das premissas científicas, ao ponto de simplesmente não adotar as medidas preventivas estabelecidas, como o uso de máscaras e o distanciamento social. Esse lamentável fato culminou com o aumento do número de casos da doença, o que fez que as instituições recebessem mais doentes, sem terem ainda uma logística clara quanto a triagem, deixando os profissionais mais expostos e consequentemente vulneráveis a esses pacientes contaminados pelo vírus;
  4. como não era costume dos profissionais o uso diário e constante de todos os EPIS estabelecidos (avental, máscara, luvas de procedimento, protetor facial e gorro), ocorreram muitos erros no uso desses EPIs, principalmente na retirada dos mesmos (desparamentação), favorecendo a contaminação;
  5. com o aumento do número de doentes, consequentemente  os profissionais tiveram sua carga de trabalho aumentada, essa fadiga pode acarretar prejuízo no desenvolvimento das atividades laborais de forma a favorecer a contaminação;
  6. diversos profissionais adoeceram, tiveram que se afastar do trabalho e, não foram substituídos, ou foram substituídos às pressas, sem que seus substitutos tivessem o adequado tempo de treinamento e/ou em alguns casos a experiência necessária para agir nessas situações, favorecendo o aumento da sobrecarga de trabalho, o que pode propiciar a quebra de protocolos de biossegurança de forma a favorecer a contaminação;
  7. os profissionais estão a meses lidando com desgastes físicos pelas jornadas de trabalhos excessivas (motivos expostos acima), e também com o desgaste emocional, convivendo diariamente com doentes graves; com a morte desses doentes; com o medo de adoecer; vendo seus colegas de trabalho adoecerem. Acresce a esse cenário, em algumas situações condições insalubres laborais, o que provavelmente está afetando a saúde emocional dessas pessoas e, por consequência poderá interferir na qualidade do trabalho desenvolvido.

Será que os profissionais de enfermagem, conseguem vislumbrar a complexidade de toda essa situação colocada acima, ou o próprio trabalho nessa perspectiva converte o próprio trabalhador em mercadoria, no qual seu corpo está simplesmente a serviço do capital. Em consequência, podemos ter a desumanização do homem pelo seu trabalho, que bloqueia sua possibilidade de desenvolvimento da sua identidade subjetiva, quando esse trabalho é totalmente imposto tornando-o uma peça simples dentro de um grande mecanismo anônimo. Assim, o capital se especializa em outras formas para se reproduzir.

O entendimento dessa dinâmica exige a análise sobre a ligação estreita entre as forças produtivas e as relações de produção. De acordo com Adorno (1986, p. 69), “demasiado otimista era a expectativa de Marx de que seria historicamente certo um primado das forças produtivas, que necessariamente romperia as relações de produção”. A necessidade do aumento da produção levou tanto à estagnação das relações de produção antigas quanto à implementação de novas relações de produção. Com as recentes demandas do capital, apareceu “a predominância das relações de produção sobre as forças produtivas, que, porém, há muito desdenham as relações”(ADORNO, 1986, p. 70). As relações de produção têm prioridade, e em geral são descoladas das condições que as criaram, “e mais do que nunca, as forças produtivas estão sendo mediadas pelas relações de produção, de um modo tão completo, que estas aparecem exatamente por isso como segunda natureza”(ADORNO, 1986, p. 71).

Nesse sentido, entendemos que a situação de duplo vínculo empregatício, baixa remuneração, condições insalubres de trabalho, e, sobretudo, o trabalho precarizado podem dificultar a organização da enfermagem enquanto categoria, levando-a à mera adaptação à situação existente, como forma de sobrevivência. A enfermagem é uma categoria profissional com histórico de submissão desde seus primórdios. Embora nas últimas décadas, por meio de suas entidades de classe e cientificas, junto com a participação nas políticas de saúde, tenha evoluído consideravelmente tentar  romper essa submissão, para o resgate de sua subjetividade que foi negada por anos, mantendo um posicionamento representativo em defesa da cidadania e, sobretudo dos direitos dos usuários dos serviços de saúde. Nesse sentido, tem se apresentado como uma categoria profissional envolvida nas questões macrossociais que estão inseridas no complexo processo saúde doença, com pontos importantes de destaque e relevância.

Acredito, que teremos um campo fértil de estudo, sobre o  trabalho em saúde realizado nessa pandemia, que trouxe consigo o  desgaste físico e emocional constante e,  ser considerado em uma vertente subjetiva, pela necessidade intensa de colocar em funcionamento defesas psíquicas, que são ativadas pelo contato permanente com a dor e o sofrimento humano, em especial no contexto brasileiro pela inserção em territórios marcados pela pobreza extrema, violência urbana, e a eterna batalha humana contra a morte. Como processar aquilo que se recebe, junto com diversas demandas ou cobranças? Será que existe um lugar e um tempo hábil para refletir frente a situações adversas? Como suportar o Mal-Estar na Saúde Pública sem o transformar em sofrimento? Adotando talvez mecanismos defensivos de diferenciação aos usuários dos serviços de saúde?

Nesse sentido,  retomo o  título  desse texto para revermos a questão diante dos apontamentos anteriormente realizados:

– quem está cuidando de quem cuida?

E levanto outra indagação:

– como ficará  a  assistência da saúde da população, quando os profissionais responsáveis por seu cuidado estão ficando doentes, sem receber o necessário suporte em saúde?

ADORNO, Theodor W. Capitalismo tardio ou sociedade industrial. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno: grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1986.

Giane Elis de Carvalho Sanino

Como enfermeira, minha contribuição para a área da saúde é a partir do cuidar, um cuidar compartilhado, baseado na ética, na humanização. Compreendo que esse cuidado, precisa ampliar o seu olhar para as questões sociais nas quais os usuários dos serviços de saúde estão inseridos. Na minha concepção todo enfermeiro é um educador e, sempre exerci a enfermagem atrelada a formação dos profissionais de saúde, em ambientes informais e formais.

2 thoughts on “Quem está cuidando de quem cuida?

  • 28/02/2021 em 19:08
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    Pois é, Geane, a enfermagem, de fato, carrega o fardo das condições insalubres e desumanizadas causadas pela calamidade pública, de modo a obscurecer as contradições que essa situação pode abrir como campo de reflexão sobre essa forma de produção que, “converte o próprio trabalhador em mercadoria, no qual seu corpo está simplesmente a serviço do capital”.

    Na educação, observo um cenário diferente, talvez porque os profissionais foram mais “protegidos” pelo teletrabalho, portanto nesse caso, as novas relações de produção, mesmo que como uma segunda natureza humana, poderão ter favorecido uma ação profissional que deslocou o trabalho docente para novas dimensões.
    Apesar de manter escondidas as contradições das relações de produção e trabalho docente como dominação, inseridos na intensificação e produção flexível, a velocidade na transmissão de informações se virou a favor desse novo modo de produzir o ensino escolar.
    Mesmo assim, também promoveu o mal-estar docente fundado, entre outros fatores, na sensação permanente de não conseguir resultados numa escola pseudodemocrática para todos e que, agora, se depara com o aprofundamento da desigualdade na manutenção do funcionamento da escola que alastra a exclusão de parte dos alunos.

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    • 01/03/2021 em 18:19
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      Olá Vania,
      Muito obrigada por sua participação!
      Interessante sua colocação ao constatar que os trabalhadores de enfermagem tem seu corpo como força de trabalho a ser utilizada pela mais valia do capital.
      Concordo contigo, referente a certa proteção do professor com o desenvolvimento das teleaulas na pandemia, também participo da formação de enfermeiros e, estou exercendo em parte o trabalho remoto desde março de 2020.
      O EAD trouxe uma ambiguidade em nossas ações, pois ao mesmo tempo que as tecnologias nos possibilitam realizar atividades bem interessantes de forma remota, as demandas de trabalho impostas pelo capital, também estão de forma indireta sobrecarregando nossos corpos.
      Muitos professores, que estão em trabalho remoto, já estão começando a desenvolver trombose venosa profunda, sem contar o estresse de nossa jornada de trabalho incessante, como reflexo do capital se espraiando em todos as vertentes de nosso trabalho, trazendo a mais valia…

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