A Escola como agência multifuncional e a gestão da Educação Básica no Brasil pelo recorte do financiamento

Rosemary Roggero

Ao longo dos anos, a escola brasileira tem passado por inúmeras transformações, e vem se tornando cada vez mais complexa e debatida em sua função (ou múltiplas funções). Pode-se dizer que a escola vem se tornando uma agência multifuncional.

Essa multifuncionalidade se expressa num cotidiano desafiador, em razão das dimensões abarcadas pela escola: a institucional se entrecruza com a humana, num contexto social e cultural (específico e diverso); a das lideranças educativas em meio a emoções e conflitos das e nas comunidade; a dimensão política, com o amparo constitucional democrático e o viés do discurso de participação, atravessados, em geral, por práticas da gestão central das redes muito pautadas pelo calendário e pelas demandas eleitorais, que permeiam os projetos de poder em disputa, do ponto de vista da valorização profissional dos educadores e da abordagem curricular, que não raro tornam a educação um projeto frágil, mutável, flexível e pouco articulado às necessidades e interesses das comunidades escolares.

Além disso, como a escola é a única presença do poder público em muitas localidades, ela se converte em zona eleitoral, posto de saúde, órgão de assistência social e até posto policial. No momento em que vivemos, com a pandemia de COVID-19, várias escolas pelo país afora, se tornaram hospitais de campanha.

Nesse contexto, é muito relevante lembrar que o que é oferecido às novas gerações em formação, sobretudo na educação básica, é atravessado por todas essas dimensões e funções que a escola vai assumindo, com alguns avanços para a sociedade, mas também com muitos conflitos, resistências e até desistências.

Algo que se mostra bem visível, é que, nos últimos anos, a escola passou a receber recursos financeiros para sua manutenção e para seus projetos, por meio, em especial do PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola) do governo federal e do PTRF (Programa de Transferência de Recursos Financeiros) e outros programas assemelhados, em âmbito das redes estaduais e municipais, os quais têm sido geridos na perspectiva constitucional de uma gestão democrática e participativa. Para isso, a equipe gestora de cada unidade conta com os órgãos colegiados, sobretudo o Conselho de Escola e a Associação de Pais e Mestres.

A questão do financiamento da educação, neste ano de 2020, tem sido bastante debatida, porque o FUNDEB atual é válido até dezembro, o novo FUNDEB já foi aprovado, tornando constitucional a política de fundos e visando aperfeiçoá-la, o que ainda está em debate para normatização.

Novamente, muitos interesses e projetos em disputa. Entretanto, no que diz respeito ao financiamento de cada unidade escolar, é preciso perceber que não basta observar os valores que chegam às escolas para pequenas manutenções. É relevante lembrar que, vários outros recursos são investidos em educação e definidos em outras instâncias: formas de contratação e remuneração de educadores e pessoal de apoio, limpeza e conservação, construções e reformas, mobiliário e livros, uniformes e material escolar, formação continuada de docentes e dos demais profissionais da área, com todas as suas nuances.

De forma geral, todos sabem que a União investe 18% e os Estados e Municípios investem 25% de suas receitas em educação. Normalmente, consegue-se acessar orçamentos dos entes federados, mas receitas efetivas e, em especial, despesas soam abstratas para os profissionais da educação. E, apesar da Lei da Transparência e da Lei de Acesso à Informação, as práticas de gestão centralizadas (fora do âmbito escolar) ainda ocultam contratos e gastos. As informações são dispersas, de difícil acesso e de difícil compreensão. Como o chefe do executivo é o ordenador de despesas, é bem comum que as definições de gastos e investimentos nesse âmbito passem muito mais pelo próprio projeto desse agente político e dos grupos de interesse que representa.

Diretores de escola têm autonomia relativa na definição da aplicação dos recursos que recebem e responsabilidades procedimentais quanto às formas de aplicação conforme as rubricas e prestação de contas.

Esse dado revela que avançamos pouco em termos de gestão democrática e participativa, no Brasil, porque não existe, por exemplo, um orçamento participativo na educação; os conselhos municipais, estaduais e mesmo o federal, não têm acompanhado as contas, em detalhe. Não lhes sobra tempo, em meio às demandas do seu trabalho voluntário. Os dados de cada ente federado são organizados por secretarias de finanças ou fazenda, analisados e aprovados (ou não) pelos tribunais de contas, mas o alcance dessa análise em relação à possibilidade de amplo conhecimento da própria área, é microscópico.

Com isso, revela-se um abismo entre os dados centrais das redes e a realidade das escolas. Estas apresentam uma série de queixas sobre o cotidiano. Queixas que passam pelas exigências administrativo-procedimentais, no âmbito do gerencialismo ou da chamada Nova Gestão Pública, que vão desde a avaliação por resultados até o adoecimento dos profissionais, aí incluídos os gestores, geralmente pouco ouvidos e muito cobrados, como mencionado.

Essa multidimensionalidade da escola contemporânea exige que se aprenda a observá-la como olhando um caleidoscópio, mas com uma visão acurada, capaz de encontrar as peças que parecem ocultas a certos arranjos que se dão no giro.

As pesquisas que temos realizado com nossos estudantes sugerem direções e parece haver um ponto de convergência entre essas direções: a distância entre o que é definido em âmbito dos órgãos centrais de cada rede e o que é decidido nas escolas precisa diminuir.

O tema do financiamento é muito importante para as educadoras e educadores porque envolve:

  • o projeto de país com diminuição ou aumento de desigualdades;
    • o projeto de educação do país, em todos os níveis e modalidades de ensino e suas políticas específicas de inclusão ou exclusão social;
    • os recursos que são disponibilizados para o  cotidiano da educação em todos os níveis (materiais de higiene pessoal e de limpeza, de escritório, livros, banda larga de internet, água, luz, etc);
    • os salários e condições de trabalho docente e dos demais profissionais da educação; bem como
    • a atratividade das profissões no âmbito da educação.

Pensar os recursos em educação significa pensar:

  • De que recursos necessitamos para fazer educação?
    • Quem define que recursos são esses?
    • Quem organiza e cuida desses recursos?
    • Qual a relação entre recursos e qualidade da educação?

Em 1996, foi implantada a política de Fundos para financiamento da educação, por recomendação do Banco Mundial: o primeiro fundo foi o FUNDEF (1996-2006); depois, veio o FUNDEB (2007 a 2020). O Novo FUNDEB já foi aprovado na Câmara e no Senado e aumentará o investimento federal no Fundo, até 2026.

O grande avanço é que essa política se tornou permanente. Mas temos que estar atentos, porque ela ainda precisa de regulamentação e porque há outras questões para observar.

Financiamento da educação é tema delicado e complexo: afeta múltiplos interesses no palco das lutas políticas. Por exemplo: fala-se muito em qualidade, mas não se conceitua nem se criam indicadores claros que permitam associar investimento à qualidade, como o Custo Aluno Qualidade Inicial.

O Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) é um dispositivo desenvolvido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação com o objetivo mensurar o financiamento necessário (calculado por estudante) para a melhoria da qualidade da educação no Brasil. Envolve o gasto por aluno a partir do número ideal de crianças e adolescentes por sala e dos insumos mínimos necessários para uma escola, passando pela valorização do profissional da educação, a infraestrutura escolar, incluindo bibliotecas, informática e quadras. Mas essa proposta não tem conseguido avançar no campo da norma.

Então, vemos que avançamos em termos de vinculação de recursos no orçamento e da criação de uma política de fundos, mas não avançamos no consenso sobre o significado de ”manutenção e desenvolvimento da educação” (MDE).

O cobertor continua curto e já se sabe disso desde os estudos para a criação do FUNDEF, que foi uma recomendação do Banco Mundial, à época (IPEA, 1998). Mas por que o cobertor é curto?

Pode-se apontar vários fatores. Um deles é não termos um sistema nacional de educação, ainda que ele esteja previsto na CF/88 e no Plano Nacional de Educação em vigor.

Também há desafios à pesquisa sobre esse tema:

  • o acesso ao orçamento pode ser feito por meio da LOA (Lei de Orçamento Anual), mas é insuficiente, porque a LOA sempre passa por negociações; e
    • apesar da Lei da Transparência e da Lei de Acesso à Informação, não temos fácil acesso e compreensão do modo como os dados sobre gastos e contratos são disponibilizados – o que não faz sentido, porque os elementos básicos das contas públicas são orçamento, despesa e contabilidade.

E por quê?… Parece que os entraves passam pelo modelo de sociedade e cultura autoritária que mantemos.

Um caminho importante para a superação disso é que educadoras e educadores se informem sobre o tema, possam participar da elaboração do orçamento e acompanhar seus gastos – o que exige que estejamos atentos à ameaça autoritária presente nesse momento histórico, como nunca antes.

Quem sabe por esse caminho possamos melhorar a qualidade dos gastos, tornar os recursos mais efetivos na prática das escolas e alcançar resultados educacionais melhores, com maior sentido quanto aos procedimentos e práticas de gestão, que invertam a lógica hoje presente: a instituição escola não deve perder-se numa lógica gerencialista, nem deve servir os políticos. Os políticos é que devem servir à educação e à sociedade. E quem deve entender – e muito! – de educação, em todas as suas dimensões, incluindo aquilo que deve ser financiado com os recursos existentes e os necessários, são os educadores. A inversão da lógica atual não é fácil. Mas é muito necessária.

Daí a relevância de se avançar na transparência e na qualidade da informação disponibilizadas pelo poder público e na pesquisa desse tema.

Rosemary Roggero

Desde que me conheço por gente, sou interessada pelo ser humano. Desenvolvimento, consciência, comunicação, relações sociais, cultura. Enfim, formação. Ler, lecionar, pesquisar, orientar, escrever são tarefas cheias de prazer. Participar da formação de pessoas é uma honra. Até porque estou incluída. Em formação. Sempre.

3 thoughts on “A Escola como agência multifuncional e a gestão da Educação Básica no Brasil pelo recorte do financiamento

  • 24/02/2021 em 12:21
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    Fez sentido! Suas reflexões e provocações acadêmicas nos faz acreditar que a formação docente é necessária e precisa estar interligada com a pesquisa e intervenção.

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  • 28/02/2021 em 16:15
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    A Rose sempre pensa além e nos ajuda a pensar também.

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  • 04/03/2021 em 03:48
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    As reflexões que você traz no texto são muito importantes, professora Rose. Trabalhadores da educação não podem abrir mão de entender pelo menos o básico em relação ao financiamento da educação. Políticos e empresários se voltam cada vez mais para a educação, elaborando discursos por meio de suas ONG´s ou os tais think tanks, que tentam fazer com que a sociedade acredite que as escolas já recebem dinheiro demais e que o problema seria a má gestão desses recursos. Ainda que isso possa ocorrer em algumas situações, é principalmente a escassez de recursos que leva à precarização das escolas. Governantes que não querem investir deturpam dados produzidos tanto pelos órgãos do próprio governo quanto por organismos internacionais, como a OCDE, entre outros. Tentam se esquivar da responsabilidade e a transferem para os profissionais da educação. O antídoto contra essas práticas é o esforço em compreender a situação da forma mais ampla possível, entrando por questões de legislação e de economia. Não é muito fácil, mas não temos outra alternativa.

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