Projetos de vida e a vida danificada
As escolas brasileiras passam por um processo de mudanças, com a implantação do chamado “novo ensino médio”. Secretarias estaduais de educação estão elaborando e implementando seus “novos” currículos alinhados com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a propaganda em relação às instituições escolares é que elas agora acolherão as juventudes (considerando a sua diversidade), promovendo uma educação integral e oferecendo orientação para que esses jovens construam seus projetos de vida. Com o tempo veremos o que essa proposta acarretará, de fato, para o ensino médio brasileiro, mas nesse momento pretendemos refletir mais sobre esse último ponto mencionado: os projetos.
Orientar os jovens estudantes na elaboração de um projeto de vida não é uma tarefa simples. As dificuldades de trabalhar com esse componente curricular estão entre as preocupações que afligem os educadores que em breve serão obrigados a fazer isso, mas não se sentem preparados para tal empreitada. Encontrar ou criar uma metodologia apropriada para trabalhar com projetos de vida é um grande desafio, mas não se pode esquecer que antes disso está a dimensão reflexiva em relação ao próprio sentido desses projetos, que as escolas ficarão encarregadas de orientar os alunos na sua elaboração. Todo o cuidado é pouco para que os educadores não se tornem semeadores de ilusões, pois já vemos muitos deles por aí, fora das escolas.
Um dos autores mais conhecidos quando se trata de projetos de vida, ou projetos vitais, como ele os define, é o professor e pesquisador estadunidense William Damon. Projeto vital, de acordo com ele, é uma espécie de objetivo com longo alcance, mais estável do que objetivos mais simples e comuns, que pode ajudar na busca pessoal de um sentido de vida, mas que vai além do aspecto pessoal, o que implicaria um desejo de fazer diferença no mundo, contribuir com algo para as outras pessoas ou criar algo novo (1).
Fazer a diferença no mundo, contudo, parece ser uma tarefa hercúlea para quem vive na sociedade capitalista, que promove uma adaptação cada vez mais completa dos indivíduos ao sistema, como alerta Theodor Adorno. Uma sociedade onde o alcance da dominação sobre os indivíduos é muito maior do que nas anteriores, com o domínio pela tecnologia (e não somente pelo terror), como indica Herbert Marcuse.
Diante disso, as reflexões de Adorno no livro “Minima Moralia” (2), bem como os comentários que Gabriel Cohn faz em relação à referida obra (3), nos dão pistas importantes para que possamos compreender a vida e, consequentemente, as possibilidades de um projeto de vida na sociedade capitalista contemporânea. Adorno busca enxergar nos mínimos sinais as tendências dominantes que dificultam a realização da vida justa. E nos convida a olhar para esses sinais de que a nossa vida é danificada com os textos breves, mas muito significativos, que compõem o livro.
O olhar de Adorno não é o de quem está em uma posição de superioridade, pois ninguém (nem mesmo um grande intelectual como ele) tem esse privilégio. Quem reflete sobre a vida danificada também a experimenta, como acontece com os outros, pois ela impregna nossa experiência a tal ponto que parece não haver alternativas. E se não temos saída, não há o que fazer. Será isso? O pensador alemão nos ensina que não, pois é diante da aparente falta de alternativas que encontramos as oportunidades para fazer emergir o possível. A consciência da realidade traz essa possibilidade. Saber que pensamos “a partir da vida danificada” e não “sobre a vida danificada”, pois quem pensa não está imune às vicissitudes de uma vida que parece levantar cercas instransponíveis ao redor do indivíduo.
As reflexões sobre os projetos de vida podem partir dessa consciência. E os jovens estudantes, ao elaborarem seus projetos, não serão alijados da oportunidade de refletir sobre as amarras que podem dificultar a realização desses projetos. Dizer aos jovens que eles podem ser tudo o que quiserem ser é desconsiderar os limites que são impostos (de classe social, cor, gênero, entres outros). Se a vida na sociedade capitalista contemporânea é danificada, por que os projetos de vida não seriam danificados também? Assim, é importante não esquecer que vivemos esse tipo de vida, pois só dessa forma podemos ir praticando os pequenos gestos que podem desatar o nó da totalidade, e com isso poderão emergir os projetos possíveis, para as vidas possíveis. Ou então permanecermos no engodo do self-made man.
(1) Reflexões presentes na obra “O que o jovem quer da vida? – como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes” (Summus, 2009).
(2) A edição consultada é da editora Beco do Azougue, de 2008.
(3) Posfácio intitulado “Alguns problemas de leitura e tradução de Minima Moralia”.