PODER DAS NARRATIVAS PARA ALÉM DO APAGAMENTO DAS MEMÓRIAS
Sandy Katherine Weiss de Almeida
Orientadora: Rosemary Roggero
Doutoranda em Educação pela Universidade Nove de Julho
As narrativas foram escolhidas como objeto de dissertação dessa pílula literária, já que são os ‘poderes de transmissão da experiência’ segundo Benjamim (1986), em uma dialética estabelecida que podem tanto avançar pelo sentido benevolente, como ameaçador. Em consonância, quando me deparei com a obra “Educação e Emancipação” de Theodor W. Adorno (2008), e em especial com o capítulo “O que significa elaborar o passado” fiquei refletindo sobre minha própria história, estabelecendo paralelos e conexões com as histórias de outros indivíduos, em que um fio condutor possa ser/estar relacionado. Que fio condutor seria esse? As memórias, memórias de um povo, de uma família, de uma comunidade, de uma escola, enfim, muitas possibilidades.
Pensando em minha história de vida, vivi e cresci em meio a contradições, que hoje, através da pequena consciência que venho conquistando dia a dia, além do estudo e mediações constantes, com meu objeto de pesquisa e em especial, meu referencial teórico emancipador, consigo perceber nuances, alguns véus sendo desvelados para enxergar para além das evidências, ou seja, as contradições presentes nessa linha do tempo, chamada vida.
Através das lentes de pesquisadora em uma perspectiva dialética e de formação humana, do indivíduo, pude refletir sobre a formação da ótica da constituição familiar. No micromundo da minha família materna de estrangeiros alemães, percebi que os frankfurtianos traziam também essa vivência e experiência em suas concepções e reflexões, já que considerar o contexto e cotidiano do objeto num dado momento histórico se faz essencial e necessário.
O entrave da fuga da pátria materna, abandonando tudo e todos pela única questão exclusiva de sobrevivência em um outro país estrangeiro, ao mesmo tempo que oferece inúmeras possibilidades, também traz medos e angústias, que, com toda certeza devem ter invadido as mentes de todos, naquele momento.
Minha família quando chega ao Brasil, se estabelece em São Paulo, com muitas expectativas e acaba por criar vínculos com as pessoas e o território que as cerca, mas as contradições também se revelam, já que as identidades não poderiam ser expostas, de pronto, elas precisavam se manterem escondidas, demonstrando segundo Adorno (2019) as pseudo identidades, gerando a adaptação desses indivíduos nesse novo contexto, em que se encontravam inseridos, como máscaras de nacionalidades distintas das que eram as originais, assim como os idiomas, que poderiam ser/estar relacionados à líderes negativos, em um país estrangeiro.
Esses líderes considerados como padrões são apresentados por “astros”, modelos e moldes para essa indústria de confecção de dimensões mundiais, com a falsa ideia de um crescimento de individualidade, nas chamadas por Adorno (2019) de “personalidades de líderes”, mas a realidade crítica e consciente revela uma individualidade desintegrada, com simples “atores representando esses líderes”.
Nessa perspectiva, podemos compreender os ensinamentos de Adorno (2008) com o binômio: reprodução e memória. Assim, a reprodução acaba sendo imediata, sem reflexão alguma, enquanto a memória se estabelece e se fixa com a subjetividade mediada pelo indivíduo.
Eu, como neta, dessa linhagem que participou ativamente desse processo histórico, mesmo após muitos anos, não me recordo de ouvir essas narrativas, quando criança, dessas épocas longínquas, mesmo meus avós já idosos nunca se revelaram tais narrativas, tenho poucos pontos em minha memória e penso o que teria ficado na memória deles? Nunca consegui enxergar essas memórias sobreviventes sobre esse período, como se de fato, eles quisessem apagar tais recordações.
Hoje, com as lentes de uma narradora-pesquisadora sobre minha própria história e narrativa não posso julgá-los, mas posso tentar mostrar e compreender essas contradições.
Essa compreensão versa inicialmente sobre o momento histórico que meus ancestrais passaram, demonstrando o interesse de alguns grupos dominadores e a tentativa de manterem os demais alienados, especialmente em manter essas informações e conhecimento isolados, aliando os medos e efetivando essas vozes silenciadas.
Nesse sentido, as narrativas ou falta delas, e mesmo os silêncios, nos revelam algo, é preciso mediar para compreender essas revelações. Assim, quais perspectivas estamos adotando em nossas narrativas, em nossas histórias?
Segundo Adorno (2008) a história traça um caminho que deveria ser da autorreflexão e consciência, que através das narrativas, do movimento de falar, deveria gerar reflexão, superação, já que os portadores das narrativas são como ‘caixas de tesouros’, os quais anseiam por serem descobertos, para que aconteça a tradição oral, efetivando assim a memória, e sendo refeita a elaboração do passado, através desse movimento de consciência do indivíduo. Todavia, a barbárie não quer que isso aconteça.
Com o preço do progresso, qual ideia eu vendo e compro em minhas narrativas? Estão todos cegos para o sofrimento, e nesse sentido, o esquecimento é a melhor opção, já que segundo Adorno (2019) “toda reificação é um esquecimento”.
Assim, uma experiência pode ser considerada como terrível para alguns, podendo causar o ‘silêncio’ em algumas pessoas, já que segundo Benjamim (1986), “não há narrativas para narrar o inarrável”, ou seja, estamos cada vez mais pobres em experiências comunicáveis, em uma rede de ‘riquezas’ de ideias falsas, na qual a preservação do indivíduo se instaura.
Nesse sentido, compreender minha história faz pensar segundo Adorno (2019) na valorização do patrimônio cultural que herdei, que nos vincula como indivíduos, como família, através do elo de experienciar. De que esse elo não pode ser rompido, que nessa ligação há fagulhas libertadoras para sermos quem narramos, de fato e que essa experiência não pode ser subtraída de nossa existência como seres humanos, para que não caíamos na barbárie.
Referências
ADORNO, Theodor W. Teoria da semicultura. Educação e Sociedade, ano 17, nº56. 1996.
__________________. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
__________________. Teoria da semiformação. In: PUCCI, Bruno; ZUIN, Antônio Álvaro Soares; LASTÓRIA, Luiz (Org.). Teoria Crítica e Inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2010.
__________________. Estudos sobre a personalidade autoritária. Traduzido por Virginia Helena Ferreira da Costa, Francisco Lopes Toledo Correa, Carlos Henrique Pissardo. São Paulo. Editora Unesp, 2019.
ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 2 ed., Brasiliense, 1986.