Para refletir…
“Pessoas mudas escrevem pra falar. Analfabetos
aprendem a escrever. Pessoas sem braços escrevem
com os pés. Os surdos escrevem no ar com gestos.
Os cegos escrevem com a voz no escuro. Pessoas
que esquecem escrevem listas. Canhotos escrevem
com a mão esquerda. Pessoas distantes escrevem
cartas. O tempo escreve no rosto rugas. Nas palmas
linhas, nas pintas pontos. E nas estrelas cadentes.
E nas cadeias escrevem nas paredes. E nas cartei-
ras de escola. Neurônios escrevem na memória. Os
genes escrevem nos corpos vivos. A chuva que es-
corre escreve nos vidros. E os dedos nos embaçados.
E nas cavernas traçados de antepassados. Bisontes,
flechas, humanos, arcos. E os médicos nas receitas.
Orientais usam outras letras. De cima a baixo, nas
verticais. E começando sempre por trás. Nos livros,
placas e nos mangás. Escreventes, escrivães, escri-
tores, escribas. Uns tomam notas pra se lembrar. Uns
fazem livros pra ser lembrados. Passos escrevem
no chão com rastros. Corvos espalham nanquim
no alto. Galinhas grafam bicando o chão. Migalhas
fazem frases do pão. Palavras ditas morrem no ar.
Em pedra escrevem nomes dos mortos. E em placas
de rua. E quando o texto acaba a escrita continua.”
Arnaldo Antunes, n.d.a., 2010