Ele Está no Meio de Nós
Dado o acalorado embate político que impera no Brasil já há alguns anos e que, praticamente, dividiu a população em dois extremos, creio que todos nós tivemos a lamentável oportunidade de nos espantar com amigos e parentes que se revelaram autênticos fascistas ao expressarem e defenderem posições que nunca imagináramos que o fariam. A fim de mostrar o lado pelo qual optaram nesse Brasil dicotômico, não se intimidaram em jorrar nas redes sociais – terra de ninguém e lugar ideal para isso – racismos, preconceitos diversos e aversão à democracia, a ponto de você, por questões morais, ter que cortar relações com eles.
O mais triste ainda é saber que isso não é uma exclusividade de nossa época, mas, sim, um problema que persiste há décadas e que ainda estamos longe de superar. Essa atemporalidade do fascismo fica evidente no estudo supervisionado por Max Horkheimer e conduzido por Theodor Adorno, denominado Estudos sobre a Personalidade Autoritária, cujo trabalho de pesquisa teve início em 1944 e só finalizou em 1950 com sua publicação.
Ambos pertencentes à primeira geração dos teóricos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer já estavam em Nova Iorque quando realizaram esse grande estudo. Alemães de origem judia, fugiram para Genebra no início da 2ª Guerra Mundial e lá estabeleceram uma filial do Instituto de Pesquisa Social. Com o avanço nazista na Europa, conseguiram asilo político dos Estados Unidos e, assim, alocaram o Instituto à Universidade de Columbia.
Eles, que vivenciaram de perto todos os horrores da guerra em decorrência do ódio doentio destinado ao seu povo pelo nazismo, ficaram chocados quando perceberam que na América, a “Terra dos Sonhos e das Oportunidades”, o mesmo tratamento era dado aos negros e, em menor escala, aos judeus também. Foi a partir desta constatação que se originou a ideia da realização de uma grande pesquisa que se propusesse em verificar o potencial fascismo latente nas pessoas e quais os fatores possibilitavam que essa personalidade se externalizasse.
Para tanto, com todo o rigor metodológico demandado pela Teoria Crítica (abordagem original da Escola de Frankfurt), utilizaram seis procedimentos empíricos, a saber: preenchimento de questionário, fornecimento de dados gerais, respostas discursivas a questões projetivas, entrevista ideológica, entrevista clínica e teste de apercepção temática. No total, 2099 indivíduos de várias partes dos Estados Unidos responderam aos primeiros questionários, que tinham a intenção de verificar o quão preconceituosos eram nos temas etnocentrismo, antissemitismo, conservadorismo político-econômico e em fascismo. Desses, foram selecionados os maiores e menores pontuadores para participar dos demais processos de pesquisa, compostos de entrevistas de cunho qualitativo.
Por intermédio da transcrição e análise de alguns trechos dessas entrevistas, Adorno identificou diversos padrões e comportamentos tipicamente fascistas, bem como a forma que se deram suas constituições. E o que mais chamará a atenção e nos deixará espantados – nós, leitores que nos depararmos com esse trabalho que já tem quase 70 anos de publicação – é o fato de tudo isso ser exatamente igual ao que é em nossa atual realidade!
A pesquisa elencou 10 categorias que constituem o pensamento político das pessoas, destacando-se a ignorância & confusão, ideologia superficial & opinião real, o pseudoconservadorismo e a omissão da escola em abordar temas relevantes às mudanças sociais, como a política e as diversidades, por exemplo. Quando você lê as transcrições das entrevistas e identifica nos argumentos dos entrevistados alguma dessas categorias, imediatamente se lembrará daquele seu amigo ou parente que mandava, vibrante e orgulhoso, aquelas fake news e correntes absurdas no WhatsApp. É tão similar que jamais cogitará que está lendo um texto da década de 40 do século passado.
O mesmo é presenciado numa categoria diferenciada em que Adorno quis saber a opinião dessas pessoas para temas polêmicos relacionados à economia e política, tais como o sindicalismo, negócios & governo, política externa e Rússia (lembrando que era o começo da Guerra Fria) e Comunismo. Há falas de trabalhadores assalariados, pobres, alegando serem contra os sindicatos que tentavam proteger os seus direitos. Comunismo, então, é um show à parte! Indivíduos vociferando contra (ou mesmo a favor), taxando-o de maior dos males à humanidade, mas que, quando convidados a explicar o seu funcionamento, simplesmente não conseguiam ou respondiam algo muito absurdo! Acho que você já viu muito disso por aí…
Enfim, os Estudos sobre a Personalidade Autoritária constituem um dos maiores trabalhos da Teoria Crítica e, conforme você vai lendo suas mais de 500 páginas, é inevitável que, em algum momento, identifique na sua própria postura e pensamentos, traços do fascismo. O que o estudo conclui e o que mais importa aqui é saber que, enquanto a maioria suprime esses sentimentos dentro de si e tentam proceder conforme mandam a moral e a ética, outros, em determinados contextos históricos, políticos e sociais, se sentem incentivados a manifestar, de forma incisiva, tudo o que retraiu até então, pois se sentem protegidos e amparados por iguais.
Atualmente, vivemos em uma sociedade tão conturbada em que as condições para que os fascistas se manifestem e imponham seus ideais são extremamente favoráveis a eles. Portanto, é preciso estar atento!
* Originalmente, esse texto foi publicado em um blog, hoje, extinto. Aqui, estará melhor guardado entre “os seus”.
Sim! Está no meio de nós! Texto imperdível!
A personalidade autoritária está sempre entre nós! É provável que dentro de cada um, como Adorno identificou. Tentamos dissuadi-la, mas mergulhados no sempre igual, somos pegos na malha alienante da minoridade e oscilamos.
Reconhecer em nós próprios os traços autoritários, me parece, o principal passo para que não sejamos também apenas fake news.