O QUE PENSAR SOBRE A REFORMA DO NOVO ENSINO MÉDIO.
A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de […] pessoas bem ajustadas, em consequência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior (ADORNO, 1995)
A Reforma do Ensino Médio no Brasil, a partir de 2022, aproxima-se a cada dia de sua efetivação. No próximo ano para a 2ª série, e 2023, para a 3ª série do ensino médio, cada escola ofertará, ao menos, dois Aprofundamentos Curriculares nos Itinerários Formativos, a fim de contemplarem as quatro áreas do conhecimento – Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e Ciências da Natureza e suas Tecnologias – ou formação técnica e profissional. O Novo Ensino Médio, assim denominado, em consonância com a BNCC, alinha a Formação Geral Básica aos componentes dos aprofundamentos curriculares a partir dos Itinerários Formativos. Itinerários estes que são escolhidos individualmente considerando o projeto de vida de cada estudante. O principal objetivo dessa proposta é proporcionar o acesso desse jovem ao ensino superior e ao mercado de trabalho considerando suas aptidões, projeções e anseios.
Algumas pesquisas já evidenciavam que o currículo do ensino médio em seu formato anterior já não atendia mais aos anseios e características dos jovens, tão bem apontadas por Bauman, em Tempos Líquidos, marcados pela cultura capitalista estabelecida em nossa sociedade: Flexibilidade, agilidade, adaptação. Neste viés, o novo ensino médio passa a ser estruturado sob alguns eixos norteadores que consideram estas características e apostam na necessidade e na potencialidade deste jovem em construir e definir o seu projeto de vida.
Entretanto é importante refletirmos: De que modo essa reforma do novo ensino médio, que coloca no jovem a responsabilidade pelo seu projeto de vida, e sua própria trajetória formativa, procura atender especificamente suas individualidades ou visa apenas preparar esse indivíduo para um modelo de sociedade estabelecido? Vale ressaltar que toda reforma na educação sempre esconde um projeto de sociedade como em muitos textos, observaram os frankfurtianos, especialmente Theodor Adorno, em Educação e Emancipação. Todas as instituições de nossa sociedade são moldadas sobre um “croqui”, um esboço de uma sociedade; a escola não seria diferente, ela também reforça e tende a nos preparar para o modelo de sociedade pré-estabelecido em que vivemos.
Não obstante, vale destacar que projeto de vida é essencialmente uma projeção de si no mundo. Mundo este marcado por uma lógica individualista e competitiva, disfarçada pelo discurso de uma cultura empreendedora que responsabiliza os indivíduos por seus sucessos e seus fracassos. O fato deste jovem delinear seu projeto de vida no ensino médio e fazer escolhas no seu percurso formativo não se resume apenas em escolher um conjunto de disciplinas, vai além: implica na forma como ele se define e se projeta na sociedade.
Dardot e Laval, em “A nova razão do mundo” Ensaio sobre a sociedade neoliberal (2016, p.145), apontaram para seguinte conclusão: “O empreendedorismo como governo de si é a realidade discursiva dessa sociedade”.
A lógica do capital, muitas vezes referida pelos frankfurtianos, volta à tona sempre que nos propomos a analisar a conjuntura social, política, econômica e seus desdobramentos nos mais diversos campos da vida em sociedade. É essa lógica que predomina nas relações, na organização das instituições, nos governos, na política, e também na escola. Propor que o jovem considere suas expectativas do futuro, voltadas para o discurso empreendedor e profissionalizante, cuja tônica é presente a todo momento nos documentos orientadores, sem evidenciar os elementos estruturantes de nossa sociedade é não considerar o problema da equidade gerado pela própria lógica que nega a diversidade e a pluralidade dos fenômenos sociais e culturais, das identidades e das oportunidades.
Delinear e decidir sobre seu itinerário formativo e projeto de vida requer um grau de autonomia e emancipação. É nesse sentido que esse exercício de olhar para o cenário da implementação do novo ensino médio, implica, desde já, questionar que oportunidades serão oferecidas para que essas “escolhas” sejam de fato geradoras de itinerários formativos, ao menos numa perspectiva de equidade.
De forma antecipada, podemos incorrer no risco de retomar uma dualidade na formação que opõe preparação para o mundo do trabalho e preparação para o conhecimento universitário e científico. Essa divisão como já vimos na história da educação no Brasil, não gera oportunidades e sim condiciona e instrumentaliza os processos formativos, gerando oportunidades desiguais e falta de acesso à educação em todos os seus níveis.
Equidade não é um princípio neoliberal e sendo essa lógica predominante nesse currículo; o resultado acaba por sua vez em transformar a escola em um local de produção de sujeitos projetados e adequados às exigências do capital e do neoliberalismo, sem oportunidades de avanço em sua criticidade dos processos sociais, que poderia levar a uma transformação futura da sociedade e superação das desigualdades sociais.
Por fim, há muitos elementos que podemos e devemos perceber, compreender e refletir ao olharmos para a implementação dessa reforma do ensino médio. Elementos estes que se fazem presentes na lógica social predominante e nos impactos na vida cotidiana que condicionam a formação, inclusive escolar, dos indivíduos na sociedade. Uma dimensão trazida pela teoria crítica da sociedade é que apesar da escola surgir como uma instituição do capital, exista em seu interior também uma força geradora de emancipação e é esta dimensão que deve ser potencializada e buscada nas práticas educacionais, no fazer pedagógico e no delinear dos itinerários formativos de tantas vidas que se projetam por meio da educação. Apesar de todas as contradições, a reforma do novo ensino médio traz em si esta potencialidade, pois trabalha a autonomia como um eixo de ação principal, entretanto a lógica parasitária do capitalismo e do neoliberalismo está sempre à procura de novos instrumentos que possam fortalecer a heteronomia desses sistemas. Cabe a nós, no momento, atenção, reflexão e resistência.