ENTRE PÁSSAROS E CIENTISTAS

Carolina Mariane Miguel

Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias.”  Eduardo Galeano

Recentemente me deparei com essa frase numa postagem de rede social e um comentário me levou a pensar novamente sobre ela. É a frase que usei como epígrafe na minha tese de doutorado que fala sobre Educação Inclusiva, uma vez que resgatei muitas histórias de pessoas com deficiência que marcaram minha vida profissional. Porém o que me chamou a atenção foi um comentário que dizia que os cientistas estavam corretos, pois somos realmente feitos de átomos.

É relevante para a análise aqui proposta, entenderem o contexto desta postagem, feita por uma pessoa declaradamente humanista e progressista, que foi questionada no comentário por outra com postura claramente conservadora. Delineava-se ali um debate político, mascarado por uma discussão literária. É notório o desprezo demonstrado pelos grupos conservadores acerca da ciência, colocando em dúvida inclusive se a Terra é mesmo redonda, mas então, o que o incomodou a ponto de responder desta forma a esta postagem em específico? Levanto como hipótese que seja a importância dada ao processo de humanização implícito no verso de Galeano.

Os estudiosos da Teoria Crítica de Frankfurt já diziam, desde “O eclipse da razão”, o quanto a ciência e os avanços tecnológicos foram uma falsa promessa de humanização das pessoas, portanto me pergunto até onde nos leva a ciência? A que serve saber sobre a composição somente física e biológica do corpo humano, sem os debates das Ciências Humanas? E por onde tem caminhado os debates desta área? Há uma real preocupação em produzir conhecimentos que nos façam ser humanos melhores?

É certo que Galeano, a pessoa que se identificou com ele para postar seu verso e eu, que me identifiquei a ponto de usá-la como epígrafe, apoiamos a ciência, porém quero estabelecer aqui uma relação de relevância dos conhecimentos socialmente construídos e difundido nos currículos escolares. A humanização dos sujeitos, sua história, em toda a sua complexidade, são questões curriculares abafadas pelos materiais didáticos, índices de aprendizagem e avaliações em massa, uma vez que nosso currículo abre pouco espaço, conquistado com muito esforço, para a decolonização, que dirá para a emancipação e para elaborar nosso passado, como defende Adorno em “Educação e emancipação”.

Os sujeitos desse verso não podem ser ignorados, por um lado temos o cientista trazendo um conhecimento mensurável que apoiaria facilmente a argumentação de positivistas, mas o passarinho… ah, o passarinho… O passarinho é aquela voz que surge na cabeça dos cientistas críticos para nos fazer pensar o que mais existe ali. Ele é natureza, humanidade, instinto, criticidade, entranha, filosofia, conhecimento e fé. E quem discordaria da sua sabedoria? Afinal somos mesmo constituídos pelas nossas histórias, pelo que vivenciamos, pelas nossas experiências.

Continuamos com discussões politicamente polarizadas sobre os mais diversos assuntos, porque há muito mais por trás de cada fala, cada comentário, cada postagem. Muito da nossa história, marcada em nossos átomos.

REFERÊNCIAS:

ADORNO, T. Educação e Emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar, 3ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Ucho Leite. 7ª edição. São Paulo: Centauro, 2002.

MIGUEL, Carolina Mariane. Retratos da vida danificada: contexto, cultura e cotidiano na trajetória escolar de pessoas com deficiência. Tese de Doutorado. Universidade Nove de Julho – UNINOVE. São Paulo: 2022.

Carolina Mariane Miguel

Doutora e Mestra em Educação pela Universidade Nove de Julho. Pós-graduada em Psicopedagogia e em Educação Especial, com graduação em Psicologia e Pedagogia. Atualmente é Coordenadora de Escola no município de Santo André e assessora educacional, executando mentoria para gestores. Possui experiência como professora e gestora na supervisão escolar de escolas de redes públicas e particulares. Atua na área de Educação, na Gestão e Administração de Sistemas Educacionais, com ênfase nos seguintes temas: função formadora, gestão democrática, educação infantil, ensino fundamental, EJA, alfabetização, formação de professores e educação inclusiva.

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