A FUNÇÃO SOCIAL DO PROGRAMA SAÚDE NA ESCOLA

O Programa Saúde na Escola (PSE), apresenta a característica de reunir as duas mais importantes áreas sociais para políticas públicas brasileiras, a educação e a saúde. Responsáveis pelos dois maiores orçamentos do governo federal, estaduais, distrital e municipais, educação e saúde estão de uma forma ou outra presentes (ou deveriam estar) na vida de todos os cidadãos brasileiros, e aqui pensaremos nos estudantes, especificamente os da educação básica beneficiados pelas ações do PSE.

O PSE surge a partir do Decreto nº 6.286 de 5 de dezembro de 2007, em uma iniciativa dos Ministérios da Saúde e da Educação, no rastro de uma série de políticas públicas de saúde e de educação associadas como o Mais Saúde e o Mais Educação, tendo sido influenciado diretamente pelo setor saúde a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), pela criação do SUS (1990), do Programa Agentes Comunitários de Saúde (1991) e do Programa Saúde da Família (1994). A Educação influenciou o PSE a partir da Conferência Mundial Educação para Todos (1990), da elaboração do Plano Decenal de Educação para Todos (1993), e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) (Köptcke, 2023).

De caráter intersetorial, visando unir esforços dos serviços locais de saúde e da educação básica, o PSE tem por objetivo contribuir para a formação integral dos estudantes por meio de ações de promoção, prevenção e atenção à saúde, com vistas ao enfrentamento das vulnerabilidades que comprometem o pleno desenvolvimento de crianças e jovens da rede pública de ensino (Brasil, 2007). Mas teria o PSE atingido este objetivo?

Em seus 17 anos de existência, atualmente o PSE está presente em quase 99% dos municípios brasileiros e é organizado com base em 13 ações de prevenção e promoção à saúde que devem ser realizadas com os estudantes da educação básica através da articulação intersetorial entre as equipes das Unidades Básicas de Saúde e as escolas públicas do território.

Entretanto, para além dos dados quantitativos produzidos pelo Ministério da Saúde sobre cada uma das ações do PSE realizadas por todo o país, estaria o Programa cumprindo com sua função social de gerar impacto na saúde e na vida dos estudantes da educação básica contribuindo para a redução de suas vulnerabilidades?

Para colaborar nesta reflexão, tomamos como exemplo a ação do PSE de combate ao mosquito Aedes aegypti, o transmissor da dengue. A quantidade de ações realizadas no país passou de 642 em 2013 para 197.915 no ano de 2023, no mesmo período e incluindo o ano de 2024, a quantidade de casos positivos de dengue saltou de 1.827 em 2013 para 2.119.974 em 2024[1], e os óbitos de 23 para 3.903[2], como pode ser observado na Figura 1.

Figura 1 Evolução da quantidade de casos positivos e óbitos por dengue, Brasil.

Fonte: Ministério da Saúde, 2024a.

Considerando a quantidade de ações do PSE sobre a dengue realizadas em escolas de todo o país, com estudantes da educação infantil ao ensino médio, estaria o Programa falhando na ação de prevenção ao mosquito Aedes aegypti? Embora o PSE não seja o único responsável pela orientação à população quanto à prevenção à dengue, o Programa tem o potencial de levar esta informação a milhares de lares brasileiros, e assim, cumprir sua função social.

Outro exemplo importante é a ação do PSE de “saúde sexual e reprodutiva e prevenção do HIV/IST”, que tem como um dos seus objetivos orientar os estudantes quanto a gravidez não planejada na adolescência. Entre 2013 e 2023, a quantidade de ações do PSE neste tema saltou de 1.750 184.815 respectivamente.

Ao relacionar estes dados do PSE com o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos do Ministério da Saúde, identifica-se uma queda de 43,6% no total de nascimentos de crianças com mães até 19 anos entre 2013 e 2022, como pode ser observado na Figura 2.

Figura 2 Total de nascimentos vivos de mães até 19 anos, Brasil.

Fonte: Ministério da Saúde, 2024b.

Da mesma maneira que não é possível afirmar que há falhas nas ações do PSE sobre o mosquito Aedes aegypti, também não dados ou estudos disponíveis que possam estabelecer uma relação direta entre as ações do PSE sobre saúde sexual e reprodutiva e a queda no índice de gravidez na adolescência. Entretanto, é possível supor que o PSE possa ter colaborado positivamente.

Colaboram ainda com estes dados, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE/IBGE) que mostrou que, entre 2009 e 2019, a quantidade de estudantes que receberam orientações sobre prevenção da gravidez se manteve estável, HIV/AIDS ou IST e distribuição gratuita de preservativos no 9º ano do ensino fundamental (IBGE, 2022), como apresentado na Figura 3. Porém, é importante considerar que a PeNSE/IBGE é realizada com estudantes de escolas públicas e privadas em todas as capitais estaduais e no Distrito Federal. Entre as escolas públicas, a PeNSE/IBGE não diferencia escolas aderidas ou não ao PSE.

Figura 3 Percentual de estudantes do 9º do ensino fundamental que receberam orientações sobre gravidez na adolescência, HIV/AIDS ou IST e aquisição gratuita de preservativo.

Fonte: IBGE, 2022, p. 144.

Diante dos dois exemplos apresentados, estaria o PSE cumprindo sua função social? Está o PSE colaborando com a formação e reduzindo a vulnerabilidade dos estudantes ou promovendo uma semiformação?

Para Adorno (2023, p. 9), “formação nada mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva. Porém, a cultura tem um duplo caráter: remete a sociedade e intermedeia esta e a semiformação”. Para o autor, a plena formação cultural dos indivíduos lhes foi negada pela burguesia, sendo destinado às camadas populares um conteúdo adaptado que possa ser absorvido facilmente, para que assim, o indivíduo se sinta integrado e adaptado à sociedade. Um conhecimento pela “metade”, mas que pareça ser total ou apenas suficiente para a manutenção da sociedade capitalista como se apresenta atualmente: razoavelmente sob controle.

A semiformação do PSE, que “a priori” é fundamentada de maneira intersetorial, na prática, é executada apenas pelo serviço de saúde, deixando de se utilizar da expertise da educação nas ações realizadas, seja pela manutenção do poder do serviço de saúde sobre o Programa, seja pela adaptação e conformação da educação de receber uma proposta de formação já definida a priori. Uma definição de formação a priori, adaptação e conformação que colaboram na manutenção das atuais escalas de poder social (Adorno, 2023).

Esta semiformação, dificulta a análise da compreensão do cumprimento da função social do PSE, uma vez que, faltam dados que permitam verificar sua efetividade no cuidado com a saúde dos estudantes, para além das Notas Técnicas do Ministério da Saúde, que são capazes de apresentar de maneira muito clara, quantitativamente, o alcance do Programa, com dados como a totalidade de municípios aderidos e a quantidade de atividades realizadas para cada uma das 13 ações; mas é falho ao não mensurar ou estabelecer claras relações entre as atividades desenvolvidas com os estudantes e a melhora dos indicadores de saúde desta faixa etária.

A semiformação do PSE, também se apresenta pela maneira como o Ministério da Saúde define as ações prioritárias a serem realizadas, sendo as mesmas em todo o país, não respeitando as regionalidades, se o município é capital de estado, de região metropolitana, interior, região litorânea ou ribeirinha, o que na prática não respeita as características e necessidades epidemiológicas de cada localidade. Assim, o PSE tem as mesmas metas em todo o país. Por um lado, democratiza o acesso a informação em saúde aos estudantes, mas por outro se mostra autoritário em suas práticas sociais. Decisão monocrática da saúde sem ouvir os estudantes. Fica o PSE no limbo de uma gestão gerencialista (Lima; Gondin, 2017) e societal (Paula, 2005) ao mesmo tempo.

Esta atuação do Ministério da Saúde remete à atuação da indústria cultural, que conforme apresentada por Horkheimer e Adorno (2002), democratizou o acesso à informação, mas submeteu os sujeitos de maneira autoritária aos mesmos conteúdos, uma indústria que busca padronizar seus consumidores, semelhante à atuação do PSE de padronizar a promoção e prevenção à saúde dos estudantes em todo o país, não respeitando as especificidades de cada território.

Também, da mesma maneira que a indústria cultural busca reduzir o consumidor a mero material estatístico estratificando e os dividindo geograficamente e em grupos (Horkheimer; Adorno, 2002), o resultado da ação do PSE é reduzido a uma prática gerencialista de um conjunto de estatísticas quantitativas das ações realizadas em cada localidade, sem aferir seu impacto social.  

Pensar a indústria cultural e o PSE, remete à ideia de que a indústria cultural continuamente priva os seus consumidores daquilo que continuamente lhes promete: uma ampla formação cultural. Pois, embora algo seja preparado para agradar o gosto de qualquer pessoa, este algo não tem por objetivo promover a emancipação do sujeito das amarras do capitalismo, mas mantém-no cada vez mais atado (Horkheimer; Adorno, 2002).

Assim faz o PSE ao prometer contribuir com a formação integral dos estudantes por meio de ações de prevenção e promoção à saúde, mas sem cumprir o princípio da intersetorialidade nas ações com pouco ou nenhum envolvimento da pasta da educação, estaria o PSE entregando o que prometeu? Ainda assim, para todo e qualquer estudante, há alguma ação do Programa no qual poderá ser alcançado.

Outro fator importante para se refletir sobre a função social do PSE, são os Grupos de Trabalho Intersetorial (GTI). Cada GTI, é formado por representantes das secretarias estaduais e municipais de educação e de saúde em cada um dos estados, distrito federal e das cidades participantes do Programa. Antes, cabe lembrar que Adorno (1986, p. 66), afirma que “a existência social não gera, de modo imediato, consciência social”, o mesmo pode-se observar com os membros dos GTI, pois o fato de pertencer ao colegiado, seja representando a educação ou a saúde, não gera necessariamente neste servidor, a consciência e a importância da função social que ocupa, para além de acompanhar (minimamente), o cumprimento das metas quantitativas do Programa para o repasse de verbas.

Faz se necessário que os membros dos GTI, busquem verificar e se certificar que o PSE esteja cumprindo com sua função social, esteja de fato gerando impacto na vida dos estudantes beneficiados e para a comunidade escolar, bem como envolvidos em todo o processo do Programa. Se isso é dificultado pelo acúmulo de outras atividades para realizar, além do PSE, pode-se pensar num problema de gestão, em que da mesma maneira que os trabalhadores são apêndices da maquinaria na sociedade capitalista (Adorno, 1986), os membros dos GTI, são os apêndices do PSE, fundamentais para o seu pleno funcionamento e cumprimento de sua função social, mas sem efetivas condições de fazê-lo.     

Assim, considera-se que, em seus 17 anos, a política pública do PSE apresenta avanços, mas também alguns retrocessos. Avança, quando mobiliza quase 99% dos municípios na adesão, possui legislação específica, fortalece o caixa das secretarias municipais de saúde e leva a discussão da promoção e prevenção à saúde para dentro das escolas públicas. Mantém-se regredido na falta de dados qualitativos, na avaliação da efetividade do Programa, na deficiência na articulação intersetorial e na falta de transparência da execução dos seus recursos financeiros.

Referências

ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. 

BRASIL. Decreto no 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Institui o Programa Saúde na Escola – PSE, e dá outras providências. 2007.

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 169-214.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional de saúde do escolar: análise de indicadores comparáveis dos escolares do 9º ano do ensino fundamental municípios das capitais: 2009/2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2022.

KÖPTCKE, Luciana Sepúlveda. Pesquisa nacional de avaliação da gestão intersetorial do Programa Saúde na Escola (PSE) 2021 – 2022: estudo de avaliabilidade. Brasília: Fiocruz, 2023.

LIMA, Iana Gomes; GANDIN, Luís Armando. Gerencialismo e dispersão de poder na relação Estado-educação: as traduções e os hibridismos do caso brasileiro. RBPAE, n. 3, v. 33, p. 729-749, 2017.

MINISTÉRIO DA SAÚDE.  Dengue – Notificações Registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Brasil. 2024a. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinannet/cnv/denguebbr.def Acesso em: 20 jun. 2024.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos – SINASC. 2024b. Disponível em:

http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinasc/cnv/nvuf.def. Acesso em: 20 jun. 2024.

PAULA, Ana Paula Paes de. Administração pública brasileira entre o gerencialismo e a gestão social. RAE, n. 1, v. 45, p. 36-49, 2005.


[1] Dados de 2024 atualizados em 17/06/2024. Fonte: Ministério da Saúde/SVSA – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net.

[2] Idem.

Edson Manoel dos Santos

Eu sou apenas um apaixonado por gatos, ciclista e professor da educação básica sempre disposto a novos desafios que levem a obtenção e a construção de novos conhecimentos. A Educação e a Saúde sempre estiveram presentes em minha formação acadêmica e atuação profissional, o que fez do Programa Saúde na Escola e a saúde escolar um dos meus temas preferidos.

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